A inércia me domina

A inércia me domina
“Se o senhor me for louvado
Eu vou voltar pro meu serrado
Por ali ficou quem temperou o meu amor
e semeou em mim essa incrível saudade
Se é por vontade de Deus valei”.
“Não é fácil abrir mão dos sonhos, da família, da terra natal, da nossa rotina… mas eu sempre acreditei que, por amor, devemos e podemos nos sacrificar.
Nasci e cresci no Tocantins. Eu amava esse lugar, aliás, amo! Quando penso em saudades meus pensamentos me levam exatamente até lá.
Eu adorava minha vida, minha rotina, mas admito que eu não tinha grandes projetos ambiciosos. Meus sonhos se concentravam no Tocantins, ao lado da minha família.
Ao longo da minha vida tive uns namoros bobos, nada marcante. Eu esperava, na verdade, que mais cedo ou mais tarde um grande amor surgisse”.
E assim Vitória começava a terapia.
Achei interessante quando ela disse que “esperava que um grande amor surgisse”.

“Conheci o Celso na empresa em que trabalhávamos. Ele tinha, não só um cargo superior ao meu, mas também um salário melhor. Por conta disso, quando engravidei, decidimos, por sugestão dele, que seria melhor que eu pedisse demissão e passasse a ficar em casa cuidando tanto do nosso filho quanto das tarefas domésticas. Eu acabei cedendo e concordando, mesmo que eu nunca tivesse me visto somente como uma dona de casa.
Minha família me ajudava muito com as questões do nosso filho, enquanto eu estava no Tocantins, mas Celso achava que isso era tarefa da esposa e, com o tempo, até ajuda da minha mãe parei de aceitar.
Um dia, Celso recebeu a notícia que seria transferido para uma outra cidade. Os benefícios eram muitos: moradia, auxílio, alimentação, plano de saúde e até auxílio creche, que Celso fez questão de recusar, pois queria seu filho sendo criado pela esposa e não na creche.
Eu fiquei insegura. Não queria sair do Tocantins e muito menos ficar longe da minha família, mas, de uma certa forma, Celso me mostrou várias vantagens. Disse que juntaríamos dinheiro e, quem sabe, em dois anos ele conseguiria ser transferido de volta para o Tocantins. Mais uma vez acatei e cedi.
Nos mudamos e minha vida se restringia a cuidar do nosso filho. Não tinha amigos, vida profissional… estava insatisfeita e longe da minha família. Eu fazia cursos e colocava currículos em empresas conhecidas, mas nunca ia nas entrevistas, pois Celso dizia que longe da minha família seria ruim colocar uma pessoa estranha para cuidar do nosso filho, e na creche seria inseguro. Eu acabava desistindo e me submetendo ao que ele acreditava como certo ou errado.
Acabamos virando um casal tradicional e conveniente. Eu levantava cedo, passava o terno, Celso preparava seu café, depois que ele saia para trabalhar eu cuidava da casa, ia ao mercado, cuidava do filho, preparava o jantar… essa era a nossa rotina.
À noite, Celso jantava, assistia TV e ia dormir. O sexo era raro de acontecer e quando acontecia era monótono, sem troca ou paixão. Quando eu questionava, ele dizia que, para mim, era fácil, pois quem trabalhava fora era ele, então ele estava bem mais cansado do que eu.
Impressionante que o que era raro tornou-se inexistente com o tempo.
Um dia, nosso filho teve uma febre a noite toda, pedi ao Celso o carro emprestado, pois o pediatra era longe. Ele reclamou, disse que eu atrapalharia a rotina dele, me questionou por que eu não iria de táxi, mas no final acabou me emprestando o carro.
Na volta do pediatra meu filho acabou vomitando no carro. Eu sabia como Celso era apaixonado por aquele carro e que ficaria irritado com a sujeira, então preferi parar no lava jato.
Quando abaixei para pegar minha bolsa e tirar nosso filho do carro, vi algo embaixo do banco. Quando peguei, era uma calcinha.
O impacto foi tão grande que, enquanto tentava me recuperar, não ouvi o frentista falar comigo.
Fiquei sentada, sem rumo e o pior ainda estava por vir.
Quando vieram me devolver o carro, o frentista virou e disse: ‘limpamos tudo e achamos esse brinco no banco de trás. Tome mais cuidado. Aqui somos honestos, mas em outro local não devolveriam essa joia’.
Era realmente uma joia linda, mas não era minha.
Fui para casa sem saber o que fazer ou falar. Queria chorar, gritar, mas não tinha com quem dividir.
Passei os dias fuzilando Celso com olhar e ele completamente indiferente. O provoquei de todas as formas para que brigássemos, mas ele permanecia alheio a minha raiva, ao meu sofrimento. Parei de levantar cedo, preparar o jantar, mas ele permaneceu completamente indiferente.
Em nenhum momento houve briga ou ele questionou a minha mudança de comportamento. Depois de semanas, numa total inércia, aguentando a total indiferença dele, voltei a fazer tudo exatamente igual: acordar cedo, passar o terno…
O que me traz aqui, Ana, é essa inércia que me consome. Eu deveria ter gritado, brigado, mas nada fiz.
Antes, admito, eu não estava feliz, mas a questão é que agora estou infeliz.
Me ajuda, Ana, eu não aguento mais viver como estou vivendo”.

Sorri para Vitória e disse: “Fique tranquila! Tentarei te ajudar. Sabe o que mais chamou minha atenção? Você disse que não estava feliz, mas você também disse que, desde a descoberta da traição, a infelicidade e a inércia estão te incomodando. Mas só agora? Será que elas já não estavam te rondando? Você não teve a percepção disso?
Você desistiu de todas as entregas de currículos, de se recolocar profissionalmente, desistiu da ajuda da sua mãe ou de colocá-lo na creche… será que a inércia já não estava aí?
Quando você procurava o Celso, ele dizia que trabalhava fora e que para você era fácil ficar em casa, mas é fácil gerir uma casa ou cuidar de uma criança sem apoio? Será que tanta ausência e anulação já não estavam te colocando num lugar de infelicidade?
Você percebe que não existe um meio termo entre estar infeliz e estar feliz? Todos eles acabam levando ao mesmo lugar: tristeza, anulação e inércia”.
Vitória fez que sim com a cabeça.
“Eu acredito, Vitória, que quando descobrimos uma traição seja sem querer ou porque estávamos investigando, devemos pensar em qual será nosso próximo passo, qual decisão devemos tomar… às vezes não haverá uma decisão certa, mas sim uma menos errada”.
Terminamos a sessão com um caloroso abraço. Vitória saiu com um leve sorriso no rosto. Algumas semanas depois, a secretária me entregou um embrulho que continha um crucifixo feito com sementes do cerrado de Tocantins e um bilhete que dizia: “que esse crucifixo sempre te guie para falar as palavras certas. Eu sei que serei feliz de novo”. Quando terminei de ler o bilhete eu disse em voz alta: “Amém!”.
Dra. Ana Flavia Dias

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