Comportamento Histórias de Vida

O que não me mata me fortalece, assim falou Nietzsche

O que não me mata me fortalece, assim falou Nietzsche

O que não me mata me fortalece, assim falou Nietzsche

Em meio à tragédia, aprendi que é preciso ter coragem para usufruir a vida como ela é

Logo no início da minha primeira análise, aos 21 anos, a psicóloga me aconselhou:

“Mirian, para de escrever e vai viver a sua vida”.

Achei o conselho um absurdo. Nunca parei de escrever porque acreditava que a escrita salvou a minha vida; que era a única saída para me proteger dos traumas de infância e da violência familiar.

Na semana passada, contei para uma psicóloga, de 79 anos, que estava muito deprimida com o trauma de (quase) ter morrido intoxicada em um incêndio.

“Mirian, se você estivesse deprimida estaria na cama, não teria força e energia para fazer tudo o que está fazendo: resolvendo todos os problemas práticos, limpando e organizando a casa, escrevendo e trabalhando tanto. Você está triste e assustada porque experimentou coisas realmente assustadoras, mas você não morreu, foi quase. E tenho certeza de que você ficou ainda mais forte e corajosa com essa tragédia”.

Amei quando ela disse que estou “chorando lágrimas choráveis”.

“Você não é mais a menininha apavorada de quatro anos que não tinha ferramentas para se defender da violência familiar. Não é mais a jovem de 16 anos que precisava escrever para se proteger das agressões externas. A vida inteira você usou a escrita como um meio de superar o medo e o sofrimento extremo. A escrita foi uma espécie de refúgio, de esconderijo, para não ser tão machucada. Mas hoje você é uma mulher madura, tem muito mais recursos para se proteger. Pode sair da concha, do isolamento, está na hora de você usufruir o que conquistou nesses anos todos”.



O verbo “usufruir”, desde a conversa com a minha amiga querida, passou a ser a minha meta existencial. Até então, sempre que algo bom ou ruim acontecia, eu parava tudo o que estava fazendo para escrever no meu diário.

Não conseguia simplesmente “usufruir” o momento. Precisava escrever, precisava registrar, como uma prova de que aquilo estava realmente acontecendo, como uma prova concreta de que eu existia.

Depois de (quase) morrer e de (quase) perder tudo o que eu tenho, percebi que a ideia de me sentir segura escrevendo meus diários dentro de casa era uma mera ilusão. Minha concha não me protegeu de um mundo violento, perigoso e ameaçador.

Não é à toa que minha crônica favorita é “Ostra feliz não faz pérola”, de Rubem Alves.

“As ostras felizes riam dela e diziam: ‘Ela não sai da sua depressão…’

Não era depressão. Era dor. Pois um grão de areia havia entrado dentro de sua carne e doía, doía, doía. E ela não tinha jeito de se livrar do grão de areia.

Mas era possível livrar-se da dor.

O seu corpo sabia que, para se livrar da dor que o grão de areia lhe provocava, em virtude de suas asperezas, arestas e pontas, bastava envolvê-lo com uma substância lisa, brilhante e redonda…

Era uma pérola, uma linda pérola.

Apenas a ostra sofredora fizera uma pérola”.

Sempre acreditei que era uma “ostra triste”, e que as feridas da violência familiar me deram a sensibilidade necessária para escrever e, assim, superar minha dor dilacerante. Escrever sempre foi, para mim, sinônimo de viver. Não conseguia viver sem escrever.

A maior lição de (quase) morrer é que a concha não me protegeu do perigo, muito pelo contrário. Quando todos os moradores do prédio foram para a rua, eu não consegui fugir do fogo, preferi continuar na minha concha. Se meu marido não tivesse me levado para o telhado, eu teria morrido intoxicada. A concha não me protegeu do perigo, a concha me sufocou e (quase) me matou.



Tenho a sensação de que não vivi plenamente até agora. Só escrevi, só me protegi dentro da concha, só me defendi dos grãos de areia que machucaram a minha carne.

Agora, quero começar a “usufruir” a vida, saborear plenamente cada minuto do tempo que me resta, sem necessariamente escrever sobre o que estou vivendo. Não preciso mais provar que eu existo e que estou viva. Chega de (quase) viver e de (quase) morrer!

Ainda estou triste e assustada porque experimentei coisas realmente assustadoras. Estou chorando lágrimas choráveis. Mas, apesar dos traumas e dos medos, ou exatamente por causa deles, quero ter a coragem de sair da concha e começar a “usufruir” a vida que me resta.

Como Nietzsche, quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas. “Amor-fati”, amor ao destino: seja este, na minha nova vida, o meu amor.

Mirian Goldenberg



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Mirian Goldenberg
Sobre

Mirian Goldenberg

Professora Titular do Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora em Antropologia Social pelo Programa de PósGraduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, colunista do jornal Folha de S Paulo, desde 2010 e autora de 30 livros.

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