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A dor dilacerante da saudade

A dor dilacerante da saudade

A dor dilacerante da saudade: Escrever ajuda a transformar a tristeza em beleza.

“Você vai me deixar sozinha e desamparada?”

“Como assim sozinha e desamparada? Estou saindo só para ver minha mãe”, reagiu meu marido, sem entender minha tristeza.

Eu também não entendi. Por que estava me sentindo tão sozinha e desamparada se adoro ficar em casa, lendo, estudando e escrevendo?

“Ato falho”, pensei após 21 anos de análise.

Aí me lembrei de que, quando minha mãe saía de casa, eu perguntava chorando: “Você vai me abandonar e me deixar sozinha aqui em casa, só com o papai, com o Carlos, com o Paulo e com o Nelson (meus três irmãos)?”.

Eu estava me sentindo a mesma menininha de 4 anos e logo compreendi o motivo. Eu estava com saudade do abraço da minha mãe.

Não senti vergonha de ser a mesma menininha de 4 anos, pois sabia que as lágrimas de saudade representavam o mais profundo amor que já senti em toda a minha vida. Deixei que as lágrimas corressem livremente, como no dia em que quase morri ao perder minha mãe.

É uma dor tão torturante e ao mesmo tempo tão bela; é uma tristeza tão triste e também a prova concreta da minha capacidade de amar e de ser amada. É o maior legado que minha mãe me deixou: o amor incondicional.

Hoje minha mãe teria 96 anos. Ela partiu aos 62. Já são 34 anos de uma saudade que ainda dói.

Ela sonhava ter uma menina, depois de ter tido dois filhos homens.

Eu nasci para realizar seu sonho.

Eu era grudada na minha mãe: ela foi minha única proteção em uma família de muita violência, ódio, gritos e brigas.

Tinha tanto pânico que não conseguia dormir. Esperava ouvir o ronco do meu pai para ir deitar agarrada na minha mãe. Minhas noites de insônia são ainda verdadeiras sessões de tortura. Não consigo dormir sem o abraço da minha mãe.

Choro sempre que me lembro da minha mãe se lamentando baixinho: “Ou vey iz mir! Ou vey iz mir!”. Aprendi muito cedo que o lamento em iídiche que traduzia a profunda infelicidade da minha mãe significava: “Ai coitada de mim! Ai coitada de mim!”. Choro só de me lembrar da sua voz triste repetindo “Ou vey iz mir! Ou vey iz mir!”, sem qualquer migalha de esperança.

Só mais tarde descobri que minha mãe tentou se matar tomando um vidro inteiro de Valium misturado a outros remédios. Ela ficou de cama durante alguns meses, paralisada do lado esquerdo da face. Como eu era menina, me disseram que ela estava doente porque misturou manga com leite. Como posso parar de chorar?

Aos 16 anos, saí de casa, mas nunca abandonei minha mãe. Ela nunca me abandonou.

Ela descobriu um câncer já avançado, aos 60 anos, e larguei tudo para cuidar dela nos dois anos e meio da doença. Não sei como consegui ter força e coragem para cuidar da minha mãe até o seu último suspiro.

Tinha um único pensamento: como vou conseguir sobreviver sem o abraço da minha mãe?

Ainda sinto culpa por não ter conseguido salvar minha mãe daquele inferno familiar. Sinto culpa por não ter conseguido dar a ela tudo o que ela mais sonhava ter: um marido fiel e uma família feliz. Sinto culpa por não ter conseguido protegê-la de toda aquela tortura, dor e tristeza.

Sinto culpa por não ter escutado sua história, desde a infância na Polônia, depois em Curitiba e em Santos. É o meu maior arrependimento.

Queria tanto conhecer sua história, precisava tanto conhecer minha história.

As experiências traumáticas da minha infância; o sofrimento interminável da minha mãe; o alcoolismo, a violência e a infidelidade do meu pai; as brigas, gritos e espancamentos diários; foi a mistura explosiva que me fez decidir não ter filhos. Nunca me senti capaz de ser mãe, pois continuo sendo a filha que busca desesperadamente ser amada, cuidada, protegida e abraçada.



No Dia das Mães, chorei porque não podia mais dizer: “Mãe querida, eu te amo, muito obrigada por cuidar de mim”.

Quando me pergunto como vou conseguir sobreviver sem o abraço da minha mãe, respondo para mim mesma: escrevendo, escrevendo, escrevendo… Aprendendo a transformar minha dor dilacerante em beleza, meu medo em coragem, minha tristeza em lágrimas e minha saudade em amor.

Mirian Goldenberg


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Mirian Goldenberg
Sobre

Mirian Goldenberg

Professora Titular do Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora em Antropologia Social pelo Programa de PósGraduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, colunista do jornal Folha de S Paulo, desde 2010 e autora de 30 livros.

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